quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

PORTADORES DE HIV - DIFERENÇAS E OPORTUNIDADES

Todos nós podemos ser portadores de HIV ou termos, entre os mais próximos, alguém que o seja.

Quando tal acontece sabemos bem o valor da informação que nos permite lidar com esse problema de saúde e, também, com as representações sociais sobre a doença.

A entrevista que a seguir se publica é um testemunho vivo que toca e que dói.

Lídia - As pessoas com sida estão em desigualdade de oportunidades em relação às outras pessoas?
Raul - Vamos considerar quando fala em pessoas com sida pessoas infectadas pelo HIV, pois Sida é o último estágio no avanço da doença e essas pessoas, estão muito debilitadas normalmente.
Claro que estão em desvantagens em todos os aspectos quer a nível de trabalho, quer empréstimos quer seguros de vida. A máscara continua a ter que ser usada e o engenho de cada um tem de ser usado para contornar estes obstáculos.

Lídia - Há maiores dificuldades a nível de emprego, escola e participação em actividades de grupo?

Raul - Uma das maiores preocupações de qualquer infectado que tenha um emprego estável o qual lhe permite viver confortavelmente, é o medo de perder esse emprego devido à sua condição de infectado pelo HIV. Normalmente as grandes empresas pedem check-ups anuais ou de dois em dois anos, aos seus funcionários. Dos diversos testes que pedem um deles é ao HIV, o qual é aterrorizante para quem sabe que está infectado e sabe que tem de fazer o teste daí a uns tempos.Depois nas próprias instituições ouvem-se conversas sobre sida (as pessoas não sabem que o colega está infectado) que são autênticas aberrações e mostram o que realmente a sociedade pensa acerca da doença. O pobre desgraçado ouve aquilo como um escárnio sobre ele, só que não se revela porque não é louco, precisa de trabalhar e está amedrontado. O stress é grande acredite.Soube do caso do cozinheiro despedido pelo grupo Sana? A justiça ainda deu razão à entidade empregadora não obstante haver relatórios científicos que atestavam a infecção pelo HIV não ser perigosa no desempenho das suas funções e não haver risco para os clientes do hotel. Mas há mais …muitos mais casos.Nas escolas certamente tem lido e os leitores também, os problemas que os pais das outras crianças levantam quando sabem haver na escola uma criança seropositiva ao HIV.Nas actividades de grupo não vejo dificuldades. Ou estou em grupos dedicados à Sida e outras DSTs (Doenças sexualmente transmissíveis) e aí estou à vontade, ou então nos outros grupos não vejo necessidade de revelar a minha condição de infectado.

Lídia - Sente preconceitos da sociedade em relação a esse tipo de doença?

Raul- Directamente não, mas eu não revelo a minha condição de infectado excepto em casos em que isso é necessário. A minha família sabe, as pessoas envolvidas de qualquer maneira na problemática da Sida com as quais tenho contacto sabem, os meus amigos infectados e pouco mais. Não tenho que publicitar a minha doença, assim como não o tenho de fazer em relação à minha orientação politica, ao clube de que gosto ou mesmo preferências sexuais. Se o tiver que fazer faço-o com o mesmo à vontade. Para os contactos comuns o meu problema de saúde é uma insuficiência hepática e agora recentemente problemas cardíacos. Não estou mentindo sequer, só que não sou obrigado a dizer que a minha insuficiência hepática é devida á toxicidade de medicamentos que tomei para o tratamento da SIDA.. Estou ligado também a doenças comuns em infectados pelo HIV,como a hepatite C e as tuberculoses multi resistentes e isso não quer dizer que seja tuberculoso ou tenha a hepatite C ou outra qualquer doença.Agora em relação à SIDA e aos preconceitos da sociedade em relação à doença eles existem, e a prova disso são os casos que acontecem diariamente, alguns mesmo vindos de entidades governamentais responsáveis que vão alimentando a fogueira da discriminação, exclusão social e do estigma.

Lídia - O que acha que deve ser mudado a nível de mentes?

Raul - Disse-me que não entende muito de informática. Mas é necessário formatar o disco e colocar tudo de novo. Os erros do passado deixaram marcas profundas e é um trabalho gigantesco mudar as mentalidades. Se todos actuarmos e tivermos o apoio das entidades governamentais a pouco e pouco as coisas podem mudar. Um dos trabalhos era o governo apoiar palestras nas escolas com crianças mesmo antes de estas iniciarem a sua vida sexual activa. As crianças podem levar essas informações para os pais em casa. Era uma maneira de aproveitar o Know how da comunidade infectada e ao mesmo tempo dar-lhes a possibilidade (aos infectados) de com esse trabalho arranjarem um meio de subsistência. O saber e a experiência de muitos infectados torna-os em peritos altamente qualificados nessa matéria. Depois a frente de combate não pode ser só na desmistificação da doença. Temos de actuar cada vez mais na prevenção, para evitar novas infecções. Os comportamentos têm de mudar, e nunca é demais lembrar que a SIDA existe.A educação em relação á doença tem de passar pela informação e não pelo medo. A Sida não é o Papão com que se assustavam as criancinhas, aplicado a todo o povo menos informado.

Lídia - E de apoios estatais?

Raul - Apoio social a nível do infectado ou a nível de associações que trabalham nesta área?
A nível de infectados há um apoio para ajudar na renda de casa, água e electricidade. Os assistentes sociais dizem desconhecer essa lei e que essa verba existe. É difícil de conseguir essa ajuda e podem-se contar pelos dedos da mão as pessoas que a nível nacional a recebem. Só com muitas cunhas dizia-me há tempos um feliz contemplado.A nível de associações o estado ajuda em alguns projectos. Mas as coisas estão difíceis e cada vez é mais complicado as associações receberem essas verbas. Quanto aos critérios para a atribuição dessas verbas e aos projectos aprovados e à sua utilidade na ajuda aos infectados, tenho uma opinião, mas não me vou pronunciar sobre ela nesta entrevista, desculpem-me.
Lídia - O que lhe falta?

Raul - Falta-me terminar o meu ciclo de vida e morrer. Até lá falta-me a segurança que me garanta a subsistência alimentar e de tecto que até hoje ainda não faltou. Note-se que nunca recebi qualquer subsidio ou apoio estatal, ou de qualquer outra instituição de apoio social. Também nunca o pedi até hoje.


Lídia - O que mudou na sua vida?

Raul - Morri e voltei a nascer, talvez seja a frase certa para ilustrar as mudanças. Na altura em que fui infectado sabia que a SIDA existia, e a minha noção acerca da doença era que matava rapidamente, e que bastava apanhar-se uma simples gripe que ela nunca mais curava e acabava por matar a pessoa infectada. Sabia que havia um medicamento chamado AZT, para a tratar mas via esse medicamento em botijas de alguns litros que era aplicado com internamento hospitalar tipo soro ou sangue nas veias. Via o tratamento da SIDA num cenário aterrador de dor e sofrimento. O meu retrato robot de uma pessoa com SIDA, era visualizado mentalmente como a figura de alguém andrajoso com feridas na cara e nos braços. Foram as imagens passadas ao mundo desde o inicio e que ficaram em memória. O quanto eu estava errado e essa minha ignorância no passado faz com que hoje compreenda o que muitas pessoas pensam acerca da SIDA.Ao saber que estava infectado, o impacto da doença mudou completamente a minha vida. É complicado aqui descrever tudo o que fiz. Sentia necessidade de ver outros infectados falar com eles, queria aprender …aprender…aprender… a como viver com a SIDA. Tinha um encontro obrigatório com a morte que ia adiando sucessivamente um mês, seis meses um ano. Ia estabelecendo metas antes de me entregar. Os meus filhos estavam no secundário ainda e não estavam preparados para a vida essa era a minha maior preocupação. Fui negociando e adiando a minha partida. Os filhos acabaram o secundário depois acabaram a faculdade, a filha casou, já tenho um neto e a vida continua.Após 11 anos de infecção, não sei quantos anos irei viver mais, mas não estou preocupado com isso. Um dia hei-de morrer mas não tenho pressa. Se analisar a SIDA na minha vida até que nem foi tão má assim. Tive tempo para parar, pensar e saber o quanto gosto de viver. Passei a ter mais amor pelo meu próximo e a gostar mais de mim mesmo. Dediquei a minha vida à causa da SIDA e não quero parar de lutar. Sei o que sofri e sei o que cada um sofre quando sabe o resultado do teste. Não há necessidade para esse sofrimento e é por isso que estou aqui tentando dar uma ajuda a quem precisa dela. A minha vida só tem sentido enquanto houver pessoas que precisam de mim.Não tenho raiva da SIDA, ela ajudou-me a crescer como ser humano. Embora pareça um absurdo, acho que lhe estou agradecido por me ter feito acordar para a realidade da vida.
Para mais informações consultar:

A pedido do entrevistado fica um comentário seu a todos os que foram deixados aqui e noutros espaços...
É importante ler os comentários,aqui e no sidadania. Alguns deles são profundos e são testemunhos vivos de que o preconceito existe em relação ao HIV.Por estranho que pareça esses preconceitos,não vêm apenas de pessoas menos cultas e mal informadas.Eles vêm também de pessoas cultas incluindo médicos.Um Abraço Raul

20 comentários:

Laurentina disse...

Olá Raul,
Gostei do que li da tua postura perante a vida e a crueldade da mesma,ja la tenho ido ao teu blog, sabes que estou contigo.
Como costume quando te leio fico com um nó na garganta, por isso vou dar uma volta ao bilhar grande e volto novamente para deixar mais umas quantas palavras de aconchego.
Beijão grande para ti

G.BRITO disse...

1 Comentário - Mostrar mensagem original

G.BRITO disse...
Este testemunho do Raul é impressionante e é a estória não só do Raul mas que qualquer um de nós que tenha a infelicidade de ser contaminado pelo HIV.
Há pouco esclarecimento sobre a forma de lidarmos com os portadores do HIV. É a tal educação sexual nas escolas que está a faltar.

Isabel Filipe disse...

Olá Raul,

Gostei de ler esta entrevista.

A tua postura ... a tua forma de estar na vida ... é de louvar ...

dou-te os meus sinceros parabéns, pela grande pessoa humana que és.

"Embora pareça um absurdo, acho que lhe estou agradecido por me ter feito acordar para a realidade da vida.
"

beijinhos

C.Coelho disse...

Excelente, excelente, excelente! Frontalidade, perseverança, amor pelo próximo. Assim se constrói a cidadania.

ARTUR MATEUS disse...

A minha vida só tem sentido enquanto houver pessoas que precisam de mim.
Raul

São estas pessoas que fazem a diferença.

R.Almeida disse...

Obrigado pelo convite para integrar a equipe, que aceitei com muito gosto. Obrigado por apoiarem a causa da SIDA, que é a minha causa de vida.Espero que os mecânicos reparem em breve a minha máquina de bombear sangue, para vos poder dar a atenção que merecem.
Kisses & Hugs
Raul

Teu mais que tudo disse...

Entrevista impressionante e clarificadora.
Na verdade, os preconceitos e as faltas de apoio revelam quanto estamos atrasados e mal informados e como as pessoas lidam mal com o HIV por causa da sua ignorância.
Gastam-se verbas astronómicas a promover o governo e os partidos políticos e para informar sobre a saúde não há dinheiro.
Este tema também deveria ser abordado nas escolas em aulas de educação sexual.

carlos filipe disse...

A IGNORÂNCIA, sim a INGNORÂNCIA é o maior amigo do preconceito e o maior inimigo do calor humano.
Este testemunho vivo e o espaço SIDADANIA, que já visitei, são lições de vida extraordinárias. Assim os corações e as mentes estejam abertas para as receber.

M.MENDES disse...

Onze anos de percurso com HIV é obra.
A forma como o amigo Raul amadureceu, moldou e tornou o seu carácter um exemplo de vida é algo de muito precioso e quase transcendental.
Apreciei a sua postura digna e senti-me revoltado com um país que não investe nos apoios fundamentais à vida e à educação dum povo.

R.Almeida disse...

Queria editar o post sobre o HIV, mas não consegui.Queria apenas acrescentar uma nota no fim do texto mas deixo-a aqui.
É importante ler os comentários,aqui e no sidadania. Alguns deles são profundos e são testemunhos vivos de que o preconceito existe em relação ao HIV.Por estranho que pareça esses preconceitos,não vêm apenas de pessoas menos cultas e mal informadas.Eles vêm também de pessoas cultas incluindo médicos.Um Abraço Raul

C.Coelho disse...

É impressionante a onda de solidariedade que este texto desencadeou. Venho do Sidadania e achei graça ao post do Raul.
Abraço

errando por aí disse...

Pela vida e pela coragem e por todos aqueles que são capazes de ser solidários.
Abraço

ARTUR MATEUS disse...

É, o post do Raul tem muita graça.
Multiplicam-se os apoios à causa.Quem falou em isolamento e ostracismo?
Abraço

whitExpressions disse...

Olá, já passei no blog do Raul e deixei-lhe as minhas palavras.
Passei por aqui para dizer que é uma pessoa muito bonita.
beijinhos

Odele Souza disse...

A entrevista do Raul é mesmo excelente. Fico contente em ver que os blogs estão usando seu poder de comunicação para abraçar causas sociais e levar informações da maior importãncia como as que temos lido no blog Sidadania. Fico muito contente que o trabalho de Raul esteja alcançando a visibilidade que merece.

Fiquem com meu carinho.

Unknown disse...

Olá.
Boa noite.
Venho comunicar-lhe que foi atribuído ao Sol Poente o prémio Cegueira Lusa do mês de Janeiro.

Boa semana.

abraço,

José Carreira

SILÊNCIO CULPADO disse...

O Silêncio Culpado atribuiu ao Sol Poente um prémio que pretende ser um grito que todos oiçam os que por ali passam.

Anónimo disse...

Parabéns pelo tema e pela distinção no "silêncio culpado"!

abraço

. intemporal . disse...

O meu agradecimento aos comentários deixados no Sidadania. A causa da Sida é a minha causa de vida também e com o Vosso apoio, a mesma será grande em todas as suas vertentes. Hoje, sinto-me feliz, pelo Vosso apoio. Bem Hajam.

Luiz Santilli Jr disse...

Eu convivi muito intimamente com essa situação de luta pela vida.
Imagino a agonia de alguém, que por qualquer razão, que não vem ao caso, passa a enfrentar todas as dificuldades de carregar uma doença estigmatizada pela sociedade como sendo um mal de pessoas de segunda classe, como se isso fosse possivel.
Há coisas das quais não cabe discutir suas causas, pois devemos ter como objetivo apenas e tão somente a solução.
A AIDS é esse caso.
Demorou a ter dectetada sua verdadeira extensão e seu risco para a humanidade.
Além disso, o componente religioso trabalhou sempre contra as formas preventivas da doença.
Não tenho muito a comentar.
A luta de Raul é a de milhões de pessoas que por caminhos que não vem ao caso, foram vitimas desse mal estigmatizante, como disse acima. Sua luta é a luta de quem tem pela vida seu grande apreço, e não se entrega apenas por que os caprichos da existência o colocaram na alça de mira dessa tragédia humana.
E é quando estamos nessa condição, que vemos como o mundo, as nações, os governos estão despreparados para preservar o maior bem do ser humano, sua saúde.
Espero e vou torcer ardentemente para que Raul chegue ao seu porto seguro, com a mente tranqüila, de quem lutou a luta justa dos que são apanhados de surpresa pelas armadilhas da vida, mas não se entregam, lutam pelo seus sonhos e pelo seu direito de viver com dignidade.
Descupem-me se não consegui ser mais solidário!
São minhas idiossincrasias, pois esse fato me remonta ao meu passado, triste!