quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

MINHAS FÉRIAS (Crônica de Leila Jalul)

Hoje é aniversário de minha amiga LEILA JALUL, cronista acreana que vive na Bahia. Hoje, mais do que em outros dias, eu adoraria dar um abraço em Leila, mas na impossibilidade de ir de São Paulo à Bahia, publico aqui, neste humilde espaço, mais uma de suas deliciosas crônicas.
Leila, FELIZ ANIVERSÁRIO AMIGA! FELIZ NOVA IDADE!
"MINHAS FÉRIAS
Se eu fosse autoridade na área educacional, em definitivo, baixaria um decreto proibindo que no primeiro dia de aula, apenas para matar a má vontade de alguns professores, fosse pedida a eterna redação "Minhas férias". Proibiria outras coisinhas banais que se repetem ano após ano, deixando crianças com o emocional no chão. Porém, como não sou autoridade e nunca serei, apenas sugiro. Ocorre com freqüência ver crianças órfãs tendo que desenhar corações e cartões para pais e mães que não existem mais. Não por insensibilidade dos professores, mas muito por orientação da própria escola. Turmas grandes, salários baixos e outras dificuldades não deixam às vezes nem que o próprio professor se aperceba desses "pequenos" detalhes.
Volta às aulas: tema livre para as redações. Dia dos pais e das mães, atividades que envolvam quem os tenha, ou não. Essas seriam algumas das providências que eu tomaria. Sempre deixo claro o respeito às exceções. Foi na terceira ou quarta série do antigo primário que me vi numa saia justa. O dia anterior tinha sido uma desgraceira só, pior do que os outros dias. E lá estava eu com o cabeçalho prontinho. Caderno de papel almaço pautado, letra bonita treinada no livro de caligrafia. O tempo passando e não saía uma linha. Roía a cabeça do lápis, quebrava a ponta de tanta força, de tanto ódio, apontava, testava. Roía de novo o lápis de pau-brasil, mastigava um pouco de grafite, cuspia a seco. E nada. Enquanto isso, as meninas iam de vento em popa. Umas contavam da Fazenda Araripe, outras de pescarias, outras de passeio de batelão, festas de aniversário, Natal... E eu, nada! Até que resolvi não ficar para trás e mandei ver.
Redação: Minhas férias.
Minhas férias foram iguais às outras. Nada de novo. Mamãe trabalhando que nem doida na loja de vovô. Irritada, quase todos os dias me dava uma surra porque eu não tinha feito o que ela mandava. Esqueci de cortar os gravetos para acender o fogareiro e, quando fui buscar, tinha chovido e os paus estavam todos molhados. Também esqueci de tirar a roupa do varal e pegou chuva por dois dias seguidos. Ficou fedida, com cheiro de manipueira azeda. Apanhei de novo, desta vez com o pedaço de taquara que levantava o varal, porque, além de molhar a roupa, ainda arrastou no chão e melou de barro. Outro dia foi horrível, papai chegou de porre, como terno de linho todo manchado de batom das quengas da 6 de Agosto. Mamãe quase deu nele.
- Vagabundo! A estas horas? Ele, nem ligava, e só dizia:
- Calma, mulher. Calma.
Deitou com os pés sujos de lama na colcha bordada e dormiu. Foram assim quase todos os dias de minhas férias.Mas, ontem, ontem foi pior. Teve uma briga na esquina lá de casa. Briga feia! A Chica Tolete, possuída pelo bicho preto (não falo o nome dele), subiu num caminhão e foi preciso chamar a polícia. Ela bateu nuns dez soldados até passar o encosto e ser presa. Foi assim. E hoje estou muito feliz por ser o primeiro dia de aula.
Reli, para ver se faltava alguma coisa. Mas, para falar a verdade, fiquei com vergonha. Amassei o papel e escrevi outra.
Redação: Minhas férias.
Minhas férias foram ma-ra-vi-lho-sas! Passeei muito, pesquei, andei de barco no açude do pai da Laélia, Seu Joaquim Francisco, lá na Estação Experimental. Tomei muito banho com os meninos. E vovó ainda deixou eu usar uma bombacha da minha irmã. Depois do almoço, que foi buchada de carneiro, Dona Joanita mandou eu brincar com as bonecas de pano da Savitre, ir mã da Laélia. Num domingo, papai, homem direito, que não fuma, não bebe, não joga e nem é namorador, me pegou pela mão e me levou para a praça do Quartel. Conversamos muito. Depois me prometeu uma boneca no Natal. Uma que fala, ele disse. Não ganhei a boneca, mas tá bom. Sei que ele é um homem de palavra, e, quem sabe, um dia dá. Não é mesmo?
Minha mentira de nada adiantava. A professora Iranira sabia, e como sabia, que a verdadeira redação estava amassada no chão. Ganhei um "ÓTIMO!" de menção. E uma piscadela de aprovação."
(*) Leila Jalul, procuradora aposentada da Universidade Federal do Acre. Autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007)

1 comentário:

Å®t Øf £övë disse...

Odele,
Esta crônica é uma verdadeira lição de vida. Infelizmente há por aí muitas pessoas com responsabilidade na educação que não têm psicologia nenhuma.
Bjo.